10.13.2004

Vida de Imigrante

A Áustria, como se sabe, não é lá muito simpática com sseus imigrantes . Apesar disto, dá para ressalvar iniciativas boas. Uma delas é o projeto KISS (Kommunikation, Integration, soziale Kompetenz e Sprachentrainig), que aqui em Graz, funciona numa parceria entre o que vou chamar de “Conselho Municipal” e o BFI, uma instituição privada.
O KISS é voltado apenas para mulheres imigrantes. E é grátis. Há desde relativas novatas como eu, que moro aqui há dezesseis meses, até mulheres como Angelika, da Croácia, que já está aqui há quinze anos. Nas sextas feiras, nos reunimos para um bate-papo: conversamos sobre as singularidades entre culturas e países, nossas dificuldades aqui, com a língua, os costumes, a cultura, a comida, a temperatura, enfim, falamos sobre o que há para rir e para chorar. Também recebemos noções básicas, que de outro modo, se custa muito a aprender: onde se vacinar contra sei lá o quê, quais os documentos que preciso e para quê, onde procurar os direitos do consumidor, onde conseguir creche para os filhos, os hospitais que existem e quais as especialidades etc, etc. É também a oportunidade de treinar a língua sem constrangimentos. Nos sábados, tratamos de temas mais específicos. Uma psicóloga ou assistente social discute conosco coisas do tipo:”como superar conflitos”, “como manter a auto-estima “,“como se apresentar para uma entrevista de emprego”, “como escrever uma carta de apresentação e um curriculum”, como passar uma boa impressão ao telefone”, e mais uma dezena de assuntos que são tão simples em português - soa até ridículo -, mas que aqui, já me levaram às lágrimas de desespero – e muito mais de uma vez.
Ás vezes me sinto burra total, a auto-estima vai muuuuuito lá pra baixo; eu, que sempre me achei inteligente e articulada, fico me sentindo agiu (A Grande Imbecil do Universo). Porque desconheço os códigos, porque ainda não domino a língua, porque ainda não me ambientei, porque tenho medo de estar fazendo algo proibido por pura ignorância de regras que me são alheias, etc, etc, etc. Para mim o KISS funciona como válvula de escape, terapia, ambiente de comparação, crescimento e estímulo. Eu me sinto melhor ao perceber que muitas das neuras que tenho aqui não são só minhas, que é um processo normal de quem deixa suas raízes e ainda não as tem firme em outra terra, é uma conquista gradual de espaço e segurança. Se é assistencialismo? Que seja. Alguém tem que ajudar com a terapia...

Outra coisa legal é que no KISS discutimos sobre nossa condição aqui, traçando paralelos com nossos países de origem. E aí ficam patentes os clichés e a ignorância que temos sobre outras culturas e histórias: O Brasil, por exemplo, só é conhecido pelo Rio de Janeiro, samba e carnaval. Mais não existe (mentira, uma vez alguém comentou sobre a Amazónia). E foi assim que eu travei contato com mulheres do Afeganistão e soube que sim, elas tem permissão para trabalhar e estudar em muitos territórios– eu achava que era terminantemente proibido. Também convivi com adolescentes que respeitam o Ramadã por opção própria, sem forçação de barra por parte dos pais ou os mais velhos.
Tem as histórias comoventes também. Pena que eu não saiba traduzir em palavras as tantas situações que já presenciei. Uma delas aconteceu logo no 2. final de semana.
Manda, uma mulher da Bósnia, mora aqui a 15 anos. Alguma de nós perguntou algo sobre seu país e ela disse que não sabia, já que há mais de 10 anos nunca havia voltado lá. Perguntamos o porque, e ela disse que já não tem para onde voltar, e mais: já não tem vontade nenhuma de voltar: outras pessoas agora ocupam sua casa. Tudo o que ela deseja da Bósnia agora é esquecer. No grupo há uma mulher da Sérvia, com história parecida. E tudo o que ela quer é o contrario do que deseja Manda: apesar das histórias de dor, sofrimento e perdas com a guerra, ela não quer esquecer. Sua cidade agora faz parte de outro país. Mas continua sendo sua cidade. A emoção na sala era era absolutamente palpável enquanto as duas contavam como a guerra entre os dois países afetou suas vidas.
Tem a história da Juliet, que veio do Iraque: ela não pode telefonar para casa porque o cabo telefónico se estragou no tempo da guerra. Tem notícias dos irmãos cerca de uma vez por mês, quando eles conseguem ligar, e foi através deles que ficou sabendo que alguns amigos tinhas sido sequestrados.
Tem histórias de perda da auto-estima: a de uma mulher islâmica, que trabalhava como secretaria em seu país. Seu pai era médico e a mãe, professora. Aqui, tudo o que conseguiu foi lavar janelas para uma firma. Ao fim do primeiro dia, quando o encarregado perguntou se ela poderia fazer o serviço outras vezes, ela não conseguiu responder. Só chorou.
Tem histórias e histórias. A minha é uma delas. Outro dia eu conto. Por enquanto, agradeço publicamnte ao KiSS, a Birgit, a Roswitha, a Frau Cano - que não é do KISS, mas uma professora gente finérrima e de bom coração; e a outras pessoas que tem me ajudado a segurar a onda aqui.
Pensando bem, aqui tem muita gente boa.

6 comentários:

Allan Robert P. J. disse...

Felícia Luisa,
Vida de imigrante é dura! A Denise, do Síndrome de Estocolmo escreveu um post sobre como viver em outro país que virou um clássico: já recebi o texto diversas vezes por e-mail. Quanto à sua viagem a Vicenza, infelizmente não tenho dicas específicas para oferecer, mas a região é muito bonita e sugiro você estar atenta às pequenas placas de fundo marrom, que indicam pontos turísticos. Evite os "Restaurantes", prefira comer nas "Tratorias", onde não existe menú fixo (trabalha-se com produtos de época) e os preços são acessíveis. "Osterias" também são menos caras que os restaurantes e têm uma opção maior de embutidos (salames, copas, presuntos, etc.). Visite o Libero (www.libero.it). No alto, à direita, clique em "mappe"; no espaço "città" escreva Vicenza; clique em "trova" e aguarde o mapa, depois clique (no quadro à direita do mapa) em "mangiare" e escolha a opção "trattorie". Mais divertido é descobrir sozinha um lugar interessante. Entre, dê uma olhada e decida se é o local ideal. Lembre-se que muitas tratorias têm a fachada horrível, mas a comida, não. Se lembrar de algo que lhe possa ser útil, eu volto. allanrpj@yahoo.it
Em tempo: é óbvio que estarei retribuindo a gentileza do link.
Ciao.

Maria Fabriani disse...

Que interessante, Felícia! Adorei esse KISS (e entendi tudinho o que quer dizer as iniciais!). Achei o maior barato oferecer a ajuda psicológica e de assistência social. MUITO LEGAL. Aliás, é com isso que eu quero trabalhar quando me formar na universidade! Muito bom. Beijocas!

Anônimo disse...

Oi Felicia, parabéns pelo post, adorei saber sobre o KISS, muito interessante, seria tudo muito mais difícil se não houvesse este tipo de apoio ao imigrante. Quantas histórias tristes por conta dessas guerras, né? Muito triste, perder sua casa, país, amigos e ter que morar em outro país, sem opção de voltar... Beijos Wilma wile@uol.com.br

Felicia disse...

Allan, obrigada pela gentileza. Vou já, já conferir no Libero.
Maria: Estou torcendo para voce se formar o mais rápido possível, he, he...
Wilma: É isso aí, o KISS é uma iniciativa e tanto. E quanto às guerras e suas consequências, só posso dizer que são de uma estupidez danada. Mas sempre tem um lado bom (detesto ser tão relativista): torna a gente mais forte.#
Beijos a todos

Anônimo disse...

Olá Lila, acho que vou conseguir comentar depois das suas orientações. Gostei muito do seu blog, dos textos, mas acho que ta faltando colocar mais fotos suas hein!!!! Como estão as aulas? Ainda está atolada?? POr aqui tudo bem!!! Hoje foi o casamento da Patrícia. Foi legal, estava tudo muito bom e é nessas ocasiões é que se reune todo mundo, embora sempre falte alguém né!!! Espero que esteja tudo bem com você. Beijo grande da sua prima Débora

Felicia disse...

Ê Borahhhhhh! Que legal voce ter vindo me visitar!! Manda um beijo grande para todo mundo, por favor, especialmente pra Patricia (e depois me conta tudo em off: quero saber da festa nos míiiiinimos detalhes). Ó, e quanto a colocar fotos aqui, não vai rolar não, sinto muito: é que eu tenho vergonha, he, he, he

 
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