9.24.2004

VIDA DE IMIGRANTE

Copiei o post abaixo da Maria, lá do simpaticíssimo Montanha Russa.
É um texto do antropólogo Roberto da Matta, publicado no Estadão de 15 de setembro de 2004. Trata da questão do imigrante e (algumas de) suas crises e reflexões:


QUANTAS VEZES MORREMOS NESTA VIDA?

Nascemos e morremos quando viajamos. O velho ditado francês que declara “partir (ou despedir-se) é morrer um pouco” não pode ser mais claro ou verdadeiro, pois todo viajante divide-se, reparte-se, multiplica-se e, quase sempre, dispersa-se, “diasporiza-se” em múltiplos pedaços. Pulveriza-se em memórias, saudades e vidas, cada qual sob o controle daqueles que deixou no seu porto de adeus.

Cada viagem sinaliza uma nova etapa, uma declaração de independência, um gesto de revolta, um rasgo corajoso de esperança, um dispendioso desabafo, um ato de rejeição, um tiro no escuro, um rito de passagem. Foi assim quando fui complementar minha educação universitária em Harvard, nos Estados Unidos; foi também assim quando saí de uma Niterói luminosa, marcada por animadas discussões intelectuais, cujo objetivo era “acabar com o subdesenvolvimento” e segui para o interior do Brasil para viver comos índios. E tem sido assim depois que retornei aos Estados Unidos como professor e fiquei numa gangorra cultural, morando entre dois países e experimentando, como membro de uma cultura, os valores de outra sociedade.

Para cada uma dessas partições há um preço. O viajante é um peregrino. Mas o viajante que estaciona e, desfazendo armas e bagagens, integra-se num lugar, torna-se um marginal. E aquele que se associa formalmente a uma instituição – uma companhia, firma ou universidade – vira expatriado. Reparte-se inevitavelmente, criando uma vida concreta onde chegou e uma outra no lugar de origem.

Uma coisa é viajar motivado pelo retorno, como acontece nos cruzeiros turísticos e nas viagens de estudo ou trabalho. Outra coisa é viajar para ficar, tornando-se residente num lugar onde não se nasceu e onde toda a realidade, da comida aos modos de falar, comprar, pedir, rezar e relacionar são diferentes, têm de ser aprendidos e chegam de fora para dentro.

O primeiro tipo de viagem inventa o turista engarrafado numa bolha. O segundo agencia o viajante que experimenta a morte e a divisão de sua vida de modo abrupto ou gradual. A prova cabal de que morreu ou virou fantasma é quando ouve seu nome falado em outra língua. Meu nome sempre foi Roberto, mas aqui nos Estados Unidos virou Hobero. No início tudo é mais ou menos diferente, depois a vida se rotiniza e o estranho transforma-se em aceitável e até mesmo em familiar. Quem diria que eu ia me deleitar com cachorros quentes e com “almoços de negócios ou conferências”, as tais brown bag talks, embora deva dizer que a tal de root beer é ainda remédio para mim.

Qualquer que seja o gosto da rotina, porém, o fato é que é impossível viver e trabalhar num lugar, criando simpatias e antipatias, descobrindo prazeres e sofrimentos, sem ter com esse espaço uma história de sentimentos e relações. Sem se sentir saudoso de alguns de seus nichos, comidas, pessoas.

Minha experiência americana me tornou um expatriado e, ao mesmo tempo, um fervoroso brasileiro. Tanto que voltei ao Brasil só para descobrir, neste breve retorno que agora faço a Notre Dame, quanto eu me liguei a este lugar e às suas coisas. Quanto eu fui tocado por suas árvores bem cuidadas, por suas alamedas emolduradas de grama, pelo cheiro de incenso de suas missas, pelo silêncio quase sepulcral de duas noites, pelas tempestades que chegam rápidas e violentas e vão embora com amesma velocidade, pelo gosto saboroso de seus vegetais, pela civilidade com a qual seus cidadãos dirigem seus carros, pela sincera cordialidade dos meus colegas.

Quando se fica entre dois mundos, morre-se muitas vezes. Tantas são as passagens de um lugar a outro. E, quando se descobre que o “entre” também tem o seu lado negativo, revelando as perdas, contabilizando as divisões, assinalando as repartições, indiciando pelos lutos mal feitos e por muita saudades. Saudade de um lado e saudade do outro; e uma saudade nova, excepcional e inusitada do interstício, da passagem, do meio-termo.

As do Brasil são de gente e de comidas. Cheguei faz uma semana e já sinto falta de um prato de carne-seca frita com cebola, isso para não falar da imensa saudade dos meus netinhos e de tudo que vem com eles. As dos Estados Unidos são da vida que aqui deixei. Pois cada paisagem desta universidade também guarda uma parte de minha vida. Moldura terna e amorosa de um passado que não se deixa enterrar. As do miolo são as de uma liberdade um tanto onipotente, aquela que acena com a promessa de ter o melhor dos dois.

São esses sentimentos contraditórios de vida e morte,de liberdade extremada e de perda que eu tenho experimentado nesta visita. É quando vejo que o pertencer é sempre relativo. Que a terra natal – a pátria ou a mátria, comodizia o padre Antônio Vieira – exige uma constante celebração de ritos patrióticos em que reafirmamos o nosso gosto de a ela pertencer, porque – quem sabe? – somos também seres de um mundo sem fronteiras. É pelo menos isso que ocorre quando morremos e deixamos de pertencer a nós mesmos.
Escrito pelo antropólogo Roberto da Matta (publicado no Estadão, dia 15 de setembro de 2004 - gentileza da Leila e do Ricardo)
Escrito por Maria às 03:12 PM | Mais: Vida de imigrante | Comente! (4)

2 comentários:

Maria Fabriani disse...

Felícia, obrigada pelo "simpaticíssimo". :c))) Beijocas.

Felicia disse...

Maria, não precisa agradecer. O Montanha é o blog que eu quero ter quando crescer. Um beijo grande,
Felicia

 
eXTReMe Tracker